Jorge cresceu em um bairro pobre e não viu muitas chances de melhorar. Seus pais eram ótimos e insistiram para que ele ficasse na escola, mas honestamente não lhe parecia a melhor opção. Mesmo assim, foi levando. Passou várias séries, diziam que estava aprendendo, mas na verdade ainda tinha dificuldade para escrever o próprio nome. Mas tudo bem. A gente continua, e continua, enquanto tá dando...
Mas tinha algo bom na escola, sabe o quê? Os amigos. Ah, desses Jorge gostava! Jogavam uma pelada muito boa, indicavam outras peladas deliciosas, regadas com uma cervejinha. Bom, uma cervejinha no início, né? Logo foi aumentando. Nem lembra mais por qual coisa começou, mas sabe que acabou na branquinha. Por uns bons anos. Era bom, ué... Dava aquele barato, era o único momento que Jorge achava que poderia fazer qualquer coisa. Que grandes sonhos ele poderia ter fora da brisa? Mas nela, uoou... Era bem doido.
E de repente Jorge tinha mais de 30 anos. É estranho, enquanto você é adolescente e se imagina com 30 anos, não pensa que vai continuar naquela... Óbvio que ia melhorar pra cacete de vida, essas coisas iriam ficar pra trás, eram um passatempo. Aos 30 já seria um homem. Ah, Jorge...
Jorge conheceu outra branquinha que se amarrou, Raquel. Era dez anos mais novinha e tentava enfiar umas coisas na cabeça deles, pra melhorarem de vida. Acabou foi é que Jorge que enfiou algo dentro do útero dela e de repente não sabiam o que fazer. Era como uma gravidez na adolescência, mas na casa dos 30.
Só que bem, de uma coisa eles sabiam... Era hora de Jorge melhorar. E assim lá foi ele, tava lá em recuperação e tudo mais. Tiveram o bebê, tão bonitinho quanto uma criança pode ser. E Raquel ficava ao lado de Jorge o tempo todo, controlando para que ele não voltasse naquele caminho, com aqueles benditos amigos. Combinaram de tentar achar um emprego, né? Agora tinham uma família, não dava mais pra pensar só neles. Beleza. Acabaram achando alguém que contratava e Jorge pediu muito, falou o tanto que precisava, que sua mulher também tava muito disposta...
Não tinham experiência nenhuma na área. Porra, se a gente não ajudar, quem vai? Eles precisam pra caralho, quase chorei com eles contando - pensava o empregador. Nem podia contratar casais, alguém mais experiente no assunto tinha advertido que casal que trabalha junto sempre dá merda. Mas merda é esse estereótipo, né? Eu assumo a responsabilidade, tá de boas.
Foram chamados. Na real, foram os primeiros a terem a confirmação da contratação, de receberem a listinha de documentos e exames necessários. E uns dos últimos a levarem tudo que era necessário. Mas beleza, imprevistos acontecem, tá com esse surto bizarro de dengue, ninguém podia ficar com o bebê... A gente entende...
Primeiro dia de trabalho, pura alegria. No segundo, faltam. Avisam meia hora antes. No terceiro, estão lá chorando, falando como Raquel passou mal no ônibus a caminho de lá e Jorge não quis deixar ela voltar sozinha. Tudo bem, e se vocês trabalhassem em horário diferente, será que ficava melhor...? Ah. Sabe o que é? Não dá. Eu tenho que ficar do lado do Jorge, ou ele ouve os amigos dele... Ele tá em recuperação, sabe? Não dá pra vacilar. Ah, é, ele é viciado... Mas se trabalhar, ele esquece a cocaína! A gente assume sim a responsabilidade, vamos lá... Beleza.
Se a gente não ajudar, quem vai?
Mais um dia de boas. E outro. Até que Jorge percebe que pode dar uma cheiradinha no banheiro antes de começar o movimento doido. Volta lá pro seu posto depois da sua dose energética e fica tudo bem... Até dar efeito colateral. Jorge tava doido pra cagar. E assim foi uma, duas, três, quatro vezes ao banheiro. Uma hora chegou lá e tinha gente, porra! Cagou na calça. Não sabia o que fazer. Como que ia explicar isso pro chefe? Nah. Fazia só duas horas que tava no trabalho, mas foda-se. Falou lá que tinha que comprar fralda e levar pro filho urgentemente. Deu maior rolo, nem era o chefe dele ali, tiveram que ligar pro outro que saiu de casa... Vish. Enfim, Jorge foi embora depois de duas horas trabalhando, no seu quarto dia.
Chegou segunda e outros vieram conversar com o chefe. Pô, aquele casal lá, sei lá, mancada hein... O cara mó usa porcaria. Ah, tava fazendo corpo mole. Sei não se aguenta.
Porra, se agente não ajudar, quem vai, caralho? Me diz?
É, Jorge. Não foi dessa vez. Teve toda aquela conversa triste de desligamento, Jorge saiu chorando, Raquel saiu bem puta por ter se fodido também por causa do erro dele. Mas os sócios acharam que não dava pra confiar. Ele ia ficar em casa, drogado com o bebê, e ela ia vir trabalhar? Duvidavam. E não tava dando pra arriscar, não naquele momento...
Mas porra.... Se a gente não ajudar, quem vai?
E pior: se não ajudarem a gente, até quando dá pra levar?
Quanto dá pra ser a favor de todos esses movimentos sociais aí, inclusive trabalhista, e ainda assim conseguir fazer sua empresa funcionar? Se não funcionar, vai acabar falindo, e aí não dá pra ajudar ninguém, né? Mas porra. Foram só três mancadas. Não dá pra tentar mais uma? Mas... E se acontecer de novo, dá tempo de substituir? A gente não tem tempo, cara... Essas duas semanas são essenciais e serão infernais. Não dá pra arriscar.
Mas... Se a gente não ajudar....
A gente tem que se ajudar primeiro.
Mas a gente já nasceu ajudado. E... eu não sei.
Viver é pesado.
Viver em uma posição de privilégio, e ter consciência disso, deixa a vida ainda mais pesada quando você se encontra nesses momentos. Como abrir mão do meu privilégio sem me prejudicar? E ainda por cima, ajudando os outros?
É. Viver é pesado.
(Jorge e Raquel não são nomes reais. E na real eu não sei nada da vida anterior à contratação deles. Mas e o background, né? Como você pode gostar de um personagem sem um background?)
História foda... me lembrou os casos dos "Humans of" da vida no facebook.
ResponderExcluirInfelizmente, nesse mundo capitalista, o empregador não tem escolha. O importante é não deixar de se importar em ser humano e solidário, e também aceitar da melhor forma o fato de que nem tudo depende da gente e que não podemos arrumar a vida de todo mundo que precisa.
Amei!
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