Em tempos de Mad Max, Game of Thrones

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Ou em tempos de Game of Thrones, Mad Max. Não sei bem qual a ordem, mas foram os dois assuntos mais falados na minha internet nas últimas semanas e não vi nenhum texto linkando os dois - embora me pareça óbvio o paralelo entre os dois mundos e como devemos compará-los.

Mad Max é um mundo pós-apocalíptico. Game of Thrones é um mundo pré-apocalíptico ("Winter is Coming" não é só uma frase, galera).

Em Mad Max, o mundo já é dor e sofrimento, os recursos naturais já foram esgotados e o pouco que ainda existe é dominado por um puro e único ser maligno. Em Game of Thrones, tudo caminha para isso. A cada temporada a neve aumenta e também a conversa sobre a preparação para o inverno, sobre os alimentos necessários para sobreviver sabe-se lá quantos anos sem novas plantações. Uma das ameaças mais ditas é como o inverno em breve chegará e as pessoas não terão o que comer.

Ambos os mundos são brutais, duros, sem misericórdia alguma. Vemos meninos serem treinados a abdicarem suas vidas em nome de algo maior nos dois, da honra ou de um lugar no céu - sejam eles kami-krazys, patrulheiros da noite ou guardas reais. Meninos que não tinham qualquer chance na vida para serem algo além disso e precisaram se agarrar nessas organizações para ter um motivo de vida.

Temos vilões detestáveis tanto em um quanto em outro. Immortal Joe e Bullet Farmer são tão nojentos e impossíveis de alguém gostar quanto Joffrey Baratheon e Ramsay Bolton. Não existe nenhum tom de cinza nesses personagens, eles apenas estão ali para serem odiados, você sabe que deve odiá-los e isso é muito importante. Mesmo que os ache fantásticos como personagens, reza todos os dias para que eles não existam realmente - tipo um bicho papão.

E os dois são mundos dominados por homens. Mundos nos quais o que acontece é a vontade desses homens, que se sentem no direito de decidir a vida tanto de homens menos favorecidos, quanto de mulheres. E pobre de você se for mulher e tentar se revoltar.

Mas em um dos dois, as mulheres acabam sendo a glória, acabam sendo o arco interessante. E no outro, são reduzidas cada vez mais a um artifício a ser usado para conquistar o público por meio de polêmica. O mais engraçado é que a glorificação da mulher acaba ocorrendo no mundo no qual elas claramente não são consideradas nada além de objetos.


E no mundo no qual a mulher ainda tem algum status, especialmente quando se considera condição social, elas são cada vez mais brutalizadas e reduzidas. Em ambos, elas são violentadas, estupradas, abusadas. Mas em um, isso vira força, poder, história. No outro, vira aquela tia inconveniente que você não gosta, mas tem que aguentar um pouquinho se quiser continuar indo na reunião de família. E em um deles, todos nós sabemos que os estupros e abusos existem, mas ninguém joga isso na nossa cara... enquanto no outro... não só sabemos que a violência sexual existe, como estamos esperando um episódio sem que ela apareça.

Sério, pensa bem. Em Mad Max todo mundo viu as mulheres quebrarem os cintos de castidade de seus corpos, vestidas em apenas pedaços de pano, uma delas grávida. E só de olhar para Immortal Joe, você sabia que aquilo não era consensual. Sabia que elas não eram nada além de escravas sexuais, que tinham obrigação de dar a ele prazer e filhos (homens, por favor). Cada vez que machucavam a personagem vivida por Rosie Huntington-Whiteley, diziam "se ferrou, danificou logo a preferida". Afinal, não era um ferimento... era um dano. Como acontece quando a tela do seu celular quebra. É inconveniente, atrapalha toda aquela beleza programada apenas para você. E para impedir um ataque, ela precisa aceitar a sua condição de objeto naquele mundo e se tornar um escudo para o carro, exibindo ainda sua barriga inchada de uma gravidez prestes a terminar. Mas era um objeto diferente: um objeto de força e poder, e não de abuso. Um objeto de empoderamento. Um escudo. Ninguém poderia atirar ali. Além de danificar a preferida, iriam matar a criança - que poderia ser um homem! E foi. Mesmo que ele não fosse sobreviver, assim como a mãe, fizeram questão de abrir a barriga de uma mulher à beira da morte, aumentando ainda mais a sua dor, apenas para conferir se era um menino - que eles glorificam, tomando ainda mais ódio por aquelas pessoas que estão fugindo de Immortal Joe. E se fosse uma menina? Alguém se importaria? A morte de um herdeiro varão doía mais do que perder qualquer mulher - mesmo que fosse a sua preferida.


Vai ter mulher defendendo mulher e vai ter mulher grávida, decidindo o que fazer com o próprio corpo, sim.

E mais: mesmo com Furiosa - aquela deusa -, que não era usada naquele momento para fins prazerosos e reprodutivos, nós sabemos que ela foi abusada. Sequestrada ainda menina de suas terras férteis e lindas para acabar daquele jeito que vimos? E ainda assim, sendo uma puta de uma mulher linda? O filme não conta, mas meu headcanon é que ela foi sequestrada exatamente para o prazer de Immortal Joe. Em algumas frases, você consegue visualizar que ela foi, sim, estuprada. E então...? O que aconteceu? Ela se rebelou contra aquele sistema e "acabou" com o próprio corpo para deixar de ser usada. Raspou o cabelo, à moda dos kami-krazys. A feminilidade de uma mulher está no cabelo, não? Então vamos acabar com ele. Perdeu um braço e arrumou uma prótese legal pra caralho, mas que não deve deixar ninguém do nível de machismo de Immortal Joe animado durante a noite. Tudo pra conseguir se libertar, mesmo que só um pouco, daquela dominação toda (lembrando que isso é meu headcanon, e não o verdadeiro). Furiosa sofreu tanto quanto qualquer uma das meninas que estava ajudando e ninguém precisou ver ela sendo estuprada na tela para saber disso.


Enquanto no filme não é aceitável que as mulheres estejam sendo violentadas - sendo aliás toda a trama ao redor dessa não-aceitação - em Game of Thrones, é. Eu duvido que qualquer pessoa tenha visto Mad Max e pensado "mas o que essas mulheres esperavam? Só servem pra reproduzir mesmo, burras pra cacete, não conseguem fazer mais nada da vida". Mas na série da HBO... Céus, foi doloroso ouvir isso tantas vezes.

A polêmica de GoT (re)começou quando fomos obrigados a assistir o estupro de Sansa Stark em sua noite de núpcias. Muitos falaram "ah, nem foi tão pesado, não mostrou nada". Meus queridos, vocês estão 1) loucos, 2) desprezando o poder de atuação da maravilhosa Sophie Turner, 3) desprezando o poder de atuação do maravilhoso Alfie Allen, 4) precisando de um psiquiatra urgente, caso realmente achem que não foi nada demais. Seguidos por alguns "mas na época isso nem era considerado estupro, é histórico". Dragões não são históricos e aparecem na trama, ok? Que bosta de desculpa é essa? E, mesmo que o violência faça sim sentido segundo a trama - não era necessário a gente ver nada disso. Especialmente não com uma atriz que acabou de fazer 18 anos (ok, foi ano passado, mas ainda assim, barely legal). A cena do episódio posterior, no qual ela aparece cheia de roxos e marcas nos braços, dizendo como ele a machuca toda noite, já teria sido o suficiente. 

você realmente precisa de mais que isso para entender o que aconteceu?

 
mais do que esses braços roxos e essa atuação maravilhosa?

Já teria sido mais do que suficiente. É impossível não acreditar que uma cena daquelas não existe apenas para objetificar a mulher e colocá-la na posição que os homens acham que elas devem estar. E ainda ouvir alguns reclamando que "nem rolou peitinho". Pra que teria que aparecer um seio? Para vocês baterem uma vendo um estupro, é isso?

Mas piorou. Eu acabei sendo muito lerda para finalizar esse post e um novo episódio apareceu. Dessa vez, escrito pelos produtores, David Benioff e D.B. Weiss, o que me fez tremer de medo logo que vi, pensando na merda que poderia ser. E foi.

Não contentes com uma cena de estupro no episódio anterior, temos outra - ok, quase outra - na qual dois Irmãos da Noite tentam estuprar Gilly, a selvagem, a única mulher na Muralha nesse momento. Primeiro: eu queria que tivessem tentado estuprar a Melisandre enquanto ela estava lá, pra ver vocês queimando, isso sim seria bonito. Segundo: Gilly já foi estuprada. Mil vezes. Todo mundo que prestou atenção sabe disso. Ela foi estuprada pelo pai, provavelmente nasceu de uma mãe que também era sua irmã e fora estuprada por esse mesmo pai. Ela viu todas as suas irmãs serem abusadas de novo e de novo e de novo. Mas precisamos violentá-la mais uma vez, já que todo esse incesto não-consensual não estava na tela. E pior: precisamos tirar toda a legitimidade desse abuso ao fazer ela ser salva por um belo cavaleiro. Ok, não tão belo assim, alguns podem dizer. Sam foi espancado ao tentar salvar sua donzela em perigo e só conseguiu quando Fantasma, o lobo gigante albino que deveria estar com Jon Snow, surgiu para salvar a todos. Isso já teria sido ruim o bastante mas... tem mais. Essa menina, abusada durante toda a sua vida, que acabou de passar por mais um trauma relacionado ao sexo, acaba de algum modo ficando excitada quando Samwell lhe diz que apenas fez o que qualquer homem bom faria. Ela se sente forçada a recompensá-lo. Não é justo deixar caras legais na friendzone, né? Vamos montar em cima deles e mostrar a eles o tanto que somos gratas.

O romance entre Samwell e Gilly estava ali, pronto para ser utilizado a qualquer momento. Não precisávamos de uma tentativa de estupro para tirá-lo da friendzone. Que nem existia (ou existe aqui, no mundo real. Meninos legais, vocês não merecem recompensa nenhuma por serem seres-humanos decentes). A única coisa boa dessa cena inteira foi não terem colocado a atriz nua - mas talvez isso possa ser visto até como algo ruim, já que só não o fizeram por ela não ser convencionalmente bonita, provavelmente. E por estar trepando com um gordo. Não tem sexo para vender em uma cena dessas.

E depois ainda tivemos a cena de nudez gratuita com o núcleo de Dorne. Tyene Sand, nesse universo filha de Oberyn e Ellaria, se irritou um pouco quando Bronn disse que ela não era a mulher mais bonita que ele já tinha visto e resolveu tirar a roupa na frente do rapaz para provar que era sim. Apenas para que no final de toda aquela cena incessante dos seios dela, ela revelasse que Bronn estava envenenado e que iria morrer se ela não desse o antídoto. Oi? Qual a necessidade disso?

Vejam bem, não sou nenhuma puritana. Longe disso. Nem acho que corpos deveriam ser tão banidos quanto são no nosso mundo. Só sou contra sexualizarem ele quando nem ao menos tem motivo. E ainda sexualizarem de modo que ressalte essa disputa entre mulheres, criada pelo patriarcado para que uma mulher sempre queira ser mais bonita que a outra. Nessa cena, era só falar que foda-se se ela não era linda, ela era foda com venenos, assim como seu pai era, e que Bronn estava prestes a morrer. Tão ou mais eficiente para fazer o sangue correr pelas veias do homem e fazer o veneno ir mais rápido do que um par de peitos.

E no final, ela ainda dá o antídoto para ele. Vai entender. Só queriam mesmo era exibir os seios da atriz.

E é isso que Mad Max conseguiu. Qualquer elogio que eu tenha a fazer a esse filme - que, tirando as personagens femininas, é tudo que eu detesto no mundo de blockbusters - se resume a isso: eles conseguiram fazer mulheres que, sim, sofreram e foram vitimizadas, mas não precisaram mostrar isso acontecendo para que nos relacionássemos com elas. Eles tinham algumas das mulheres mais bonitas da atualidade ali - que desfilaram pela Victoria's Secret e já possuem várias fotografias de nu no portfolio - e não precisaram exibir o tempo todo seus corpos. Sim, teve aquela cena inicial ridícula delas na areia com uma mangueira, mas é assim que aquela cena acaba:

Meu corpo não é sua propriedade.

Todo mundo conseguiu enxergar em Mad Max que nenhuma daquelas mulheres estavam onde queriam, nenhuma delas tinha escolhido estar com Immortal Joe e, por isso, elas estavam certas em se revoltarem e fugirem de seu captor. O filme mal tem trama, mas toda que tem é inteira ao redor disso e apenas disso.

O mais triste nisso tudo, para mim, fã doida do mundo Game of Thrones, é que Mad Max vem de uma série de filmes que nunca se importou em representar mulheres de forma correta. Mesmo com uma grande vilã em filmes anteriores - interpretada por Tina Turner -, não faria diferença alguma se aquela personagem fosse mulher ou homem. Já Game of Thrones vem de uma série de livros incríveis, nos quais as mulheres são as mais fortes, as com os pensamentos mais complexos e profundos, as quais não poderiam em momento algum serem homens. Uma série de livros gigantescos sobre a qual o autor nunca entende direito como continuam fazendo para ele perguntas estúpidas, tipo:

"Notei uma coisa muito interessante em seus livros, que você escreve 
mulheres muito bem e bem diferentes. De onde surgiu isso?" 
"Sabe... Eu sempre considerei que mulheres são pessoas". ¯\_(ツ)_/¯

David Benioff e D.B. Weiss, produtores de Game of Thrones, podem não ter entendido esse recado que George R. R. Martin nos deu, mas George Miller entendeu direitinho. Em um filme mais preocupado com corridas, perseguições e explosões, ele conseguiu mostrar mais do que uma série, que deveria ser especialmente inteligente e política, mas que acabou virando só um show de abusos. O material que fez com que As Crônicas de Gelo e Fogo virassem um sucesso está todo lá, nos livros. Os produtores só precisam consultar de novo e aprenderem que mulheres não são objetos, e que o patriarcado é muito mais interessante quando está sendo destruído.

I still believe. Especialmente em Sansa rainha e o resto nadinha. Pelo menos nos livros.

Um comentário:

  1. A história Game Of thrones é boa e bastante divertida. Deixe de ver #GoTSDCC, há um tempo, mas acho que a voltarei a ver. Achei muito interessante a maneira em que terminou a última temporada por todos os spoilers que li em Hbo encontrei a data e horário de quando sai a novo episodio, assim que vou me atualizar para que possa vê-la e entender melhor.

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